Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









quarta-feira, 29 de maio de 2013

Dia dos "Nós"

Bom dia!
Estou aqui, estou bem, estou a full!
Mas ai!, hoje é o dia dos "NÓS", e acordei deste lado do mundo com o mundo a levantar a ombros as forças de uns e de outros, e isto assim é bonito e dá mais vontade!
Gosto do Diogo!, gosto da Luísa!, e gosto do Pedro, meu querido amigo, que dedicou alma e suor a escrever este artigo, a compreender as esquinas destas histórias de EM, com compaixão e respeito e seriedade e um tom de cabeça erguida que só faz juz a este nós com bola para a frente.
Acordei com o corpo inteiro num formigueiro de boas energias!



quinta-feira, 14 de março de 2013

Ano

Já me confessei melancólico-sentimentalóide com simbolismos; datas que marcam, cores que lembram, números que significam, gestos que representam. Gosto de voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles.
Ontem passei em revista este lugar, que cumpre agora 1 ano (Já?, parece que foi ontem! Só?, pareceu uma eternidade!); um levantar-da-voz-e-do-nariz em forma de blog cujo fôlego que se queria tornar eco de perguntas e interrogações, reptos e algumas-respostas, desafogamentos e fôlegos intermitentes, dores e gritos de ipiranga.
Gosto de dar passos atrás antes de saltar adiante. E por isso reli as linhas - as minhas e as vossas -, remastiguei as palavras, regurgitei as angústias, regargalhei os sentidos de humor em volta delas, repensei as dúvidas, voltei a suar os medos e as esperanças de ter pé de pé contra as correntes. Voltei aos passos dados no eoutrascoisas e remordisquei, rebelisquei, reabracei as vozes que se ergueram nesta mesa, imaginei as outras tantas (dois milhões de nós) que não falaram nem deixaram de (se) sentir.

Um ano em perspectiva: dois de diagnóstico, segunda medicação, dois pelo-menos surtos, seiscentaseoitentaesete picadelas no corpo, dois corta-agulhas, três diários de injecções, um semi-herói, quatro ressonâncias, uma dolorosa punção-monção-lombar. 13614 espreitadelas a esta mesa (10000 das quais creio pertencerem à minha mãe), 37 vezes levantada a voz, 186 contra-pontos, histórias desse lado.

A minha EM continua comigo, mas as minhas outras coisas trouxeram-me uma mudança de vida, uma viagem, um regresso, um (re)começo. Um início fresco e do zero - uma aventura em curso.
E se bem que o meu corpo se assemelha cada vez mais a uma peneira e tema rasgar pelo picotado, e saiba perfeitamente ao som de que canção escrevi o primeiro post e chorei os primeiros meses, dois anos depois custam menos. Às vezes. Tem vezes. Mas não tem todas. 

E se bem que já acalmei os dentes ácidos que me mordiam por dentro, todas as horas de todos os dias, dois anos (segunda medicação, dois pelo-menos surtos, seiscentaseoitentaeagoraoito picadelas no corpo, dois corta-agulhas, três diários de injecções, um semi-herói, quatro ressonâncias, uma dolorosa punção-monção-lombar), continuo a não saber responder à maior generosa parte das perguntas já entornadas.

Terei mais surtos? Serão graves? Poderei ter filhos? Perderei memória?, pele?, pernas?, juízo?, prazer?, correrei amanhã, poderei andar, poderei amar?

O eoutrascoisastambém é ainda um lugar onde se continuam a querer entornadas discussões, novidades, perguntas, respostas (alguém as tem?), conversas, histórias e viagens - a tal mesa onde nos possamos debruçar – em redor da vida com Esclerose Múltipla e Outras Coisas Também


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

EM para a rua, a luta continua

Os graus continuam a torrar-me as manhãs, e o sol das sete acordadas parece ter ocupado o lugar, bem no alto, do que deveria pertencer ao meio, pico do dia. 
A aventura continua, e estou neste momento a trabalhar num hostel no coração do bairro de Palermo enquanto espero que as aulas do mestrado comecem. O ordenado é miserável, mas as horas são gozadas sem pressas nem confusões, entre as conversas com os viajantes que por ali passam e o tempo para ler, quando não passa ninguém.
A aventura continua - as outras coisas vão-se vivendo -, mas a EM nunca se deixa esquecer, e desta vez assumiu a sua forma mais detestável: a de "condição pré-existente", na sua vertente de alerta-vermelho para seguradoras e cautelopessimismo para qualquer qualquer cálculo de quota mensal a propor para um plano de saúde.
Pois é. Que a Argentina também tem um sistema nacional de saúde, mas - como imagino que muitos países também o façam - a Universidade exige-me, para minha ansiadinscrição, um comprovante de um plano de saúde válido no país (convido-vos a seguir o raciocínio: sem seguro, não há inscrição, sem inscrição, não há mestrado, sem mestrado, não há visto, sem visto, não há saúde que me valha!).
Diabos!, depois do batalhado ano a tentar arranjar maneira de furar a restrição de levantamento de injecções para poder emigrar, depois da suada espera para acabar o estágio da ordem e poder estudar o quero, depois das taquicardias da entrada no mestrado só à segunda tentativa, e uma pessoa tão sossegada pensando que agora-é-que-é, e pum! crash! plim! ploing!
É de mim ou isto está a começar a parecer uma novela indiana?

Lá me reuni com um assessor de seguros (gente tida como genericamente detestável, mas este era um amigo de um amigo e foi o tipo mais extraordinário do mundo), que me explicou a minha situação. Bom, não foi bem explicar. Depois de me ter explicado como funcionava o sistema de saúde argentino e o plano de saúde que tinha para me oferecer (e eu quase-contente com o requisito de inscrição quase-cumprido), lá lhe disse, nem mais nem menos ênfase do que aquele que se merece: "Bom, parece-me tudo lindamente, mas eu tenho uma particularidade: é que eu tenho esclerose múltipla. Algum problema?"
E com "ele explicou-me a minha situação", o que eu deveria realmente dizer seria "ele engasgou-se e ia caindo da cadeira ao chão".
Que, nesse caso, eu tinha uma condição pré-existente (acho que já vi esta expressãozinha ser dramatizada em filmes de hollywood, na mesma categoria de filmes sobre casamentos por conveniência e outros que tais), que a seguradora era, por lei, obrigada a aceitar-me, mas que as seguradoras se "protegiam" aplicando, nestes casos, valores de seguro altíssimos (assim enxotando). Que me iriam exigir a apresentação de TODO o meu historial clínico, com exames (tacs, rm's, sangues, potenciais), diagnóstico e declarações médicas e - esta é a melhor parte - prognóstico do meu médico.

Ora (com a devida vénia ao meu semi-herói) pedirem prognósticos sobre a evolução da EM dá vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo - tivéssemos nós prognósticos, pudéssemos nós saber as horas de amanhã (estaremos bem?, sentiremos o corpo?, poderemos correr amanhã?), e meia definição do que é ter EM se evaporaria.

A conversa com a boa alma terminou com uma franca confissão: "si un seguro para un tipo común te sale 800 pesos al mes, a vos te van a pedir, supongamos... unos 4000? no te quiero mentir, la verdad que no lo sé bien, pero las seguradoras no te van a tomar barato...". 

Condição pré-existente... damn you. Como se não nos bastasse vivermos as horas na consciência dessa condição, condição da vida e das horas e dos sonhos, de um "e se" e de um "tudo bem, mas". Como se não fosse bastante viver forçando um optimismo nas guelras para poder respirar, um "vai correr bem" arrancado à bruta, puxado a meia voz rouca, entalado entre as expectativas e os medos, as horas passam e a voz a sussurrar, em modo de reza autista, "vai correr tudo bem, vai correr tudo bem", e estes miseráveis a puxar a sardinha ao e-se-corre-tudo-mal, vai ter de se submeter a uma auditoria, protegendo os calos já forrados a ouro,  e eu cheia de bolhas furadas, precisamos de um prognóstico.

Ai querem um prognóstico? Também nós, mas são doces!

Bom, bom, teimosa como sou, na hora seguinte mandei cinco emails (ok, um deles foi aos paizinhos, em modo "help!, o que faço??"), e estou a estudar atalhos e alternativas que sejam economicamente viáveis. Porque isto vai-se resolver, porque há força para continuar a rezautista em voz alta e puxar à bruta quantos "vai correr tudo bem" sejam necessários para que assim seja, porque - porque tem de ser.
E as outras coisas também acontecem no meio das embrulhadas. 
Ainda ri com a resposta da menina de uma companhia de seguros de saúde de renome à minha pergunta "têm seguros de saúde que cubram estadias no estrangeiro": "não, nao, dona catarina, nós só fazemos seguros de saúde, não reembolsamos viagens".

sábado, 2 de fevereiro de 2013

"É preciso recomeçar a viagem"

Lisboa soube bem, carregada de vinho quente a aquecer a alma e sóis de inverno que só Lisboa deixa escorregar. A família, a lareira da tia, os lanches da mãe, os primos e as galhofas de irmãos, as saudades não mortas mas potenciadas, as caras do costume nos lugares de sempre e noutros descobertos. Gosto de Lisboa e da sua luz, gosto de Casa e do extraordinário lugar-Comum que me são as colinas, os miradouros e as ruas.
Em chegando, "não me quero ir embora".
Em partindo, um inspirado, resfolegado "vamos a isso", que a aventura ainda não começou (?) e é tempo de dar firmes passos rumo a esta vida que escolhi, por agora.

Seis meses de injecções na mochila (e um molho de declarações juradas, certificadas, assinadas, fotocopiadas que não chamam qualquer tipo de atenção aos seguranças dos aeroportos, e eu bem podia ter cópias de bd da mafaldinha e dava no mesmo, que raio de segurança é esta que me tira garrafas de água fechadas no lixo - já para não falar nas tesouras das unhas, e como é que eu agora asseguro a manutenção das ditas - mas me deixa passar nos raios x com 180 agulhas altamente afiadas nos bolsos, suficientes, veneno tivessem, para aniquilar toda a tripulação e metade dos passageiros just for fun), dizia eu, seis meses de injecções nas mochilas com excesso de peso, as famílias em procissão para o aeroporto e uns quantos chegados ao coração a completar o circo da partida - que eu gosto de despedidas porque nelas as almas se apertam e choram e se abraçam e se amam além-adeus.

O inverno chuvoso dos últimos dias de Lisboa (a dizer "saiam-me da frente, vamos embora, aviemos!") deu lugar a um verão porteño de 38 húmidos graus, às janelas inutilmente abertas e aos dias passados de cabelo enrolado no alto do pescoço, a pedir brisa. Buenos Aires está deserta, e até aos dias lhes dá a moleza do calor, e não passam mas se deixam escorregar  l e n t a m e n t e  pelas moles horas. Curiosamente, o calor custa mas não acorda a EM, e tenho a absurda alegria de poder anunciar que os meus suados dias têm sido tão pegajosos e pesados como os dos restantes mortais. 

Esperar - ah!, as esperas que também por nós esperaram - continua a custar. Conheci uma argentina que me disse que sou um "culo inquieto", e nenhuma novidade me estava dando, pois já sabemos os horários da casa: amanhã já devia ter chegado ontem, a vida devia acontecer ao compasso do meu discurso (atabalhoado, apressado, atrapalhado, atropelado) e as respostas às perguntas deviam ser imediatas (quando saiem os resultados do mestrado? quando posso passar a levantar os documentos? quando posso começar a trabalhar? quando podemos tomar um café? quando acontecemos?).

Quanta impaciência me corre neste corpo, quantos formigueiros me apressam o ritmo, querer viver, enxotar os medos das horas que ainda não conhecemos, estaremos bem?, sentiremos o corpo?, poderemos correr amanhã?

Sem pressas nem dias perdidos, corramos pois, caminhemos se apenas pudermos, mas viver é preciso.

"O fim da viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."

(José Saramago, Viagem a Portugal)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

matEMática pura

É engraçado; tenho EM e sinto que, por isso, o mundo me deve o mundo. Como se já tivesse a minha quota de mala suerte atribuída e maldistribuída, e  passasse a confiar, em jeito era-o-que-mais-faltava, que a vida me corra relativamente bem em tudo-o-mais. Sem caprichos nem mimos; apenas que não me toquem mais improbabilidades (1 em cada 2000 portugueses tem EM, E TINHA DE SER LOGO EU? Hum. Raios.). No fundo, uma dose imoderada e completamente irrazoável de recalcamento com o universo, como quem diz "já tenho a minha fatia, agora vai chatear outro", aleatório sim-senhor, mas com limites!
Como se tivesse ou devesse ter uma vacina kármica contra piolhos tropicais, pianos caídos de janelas, catástrofes naturais, acidentes aparatosos, rejeição académica, rejeição em geral, pé-de-atleta, doenças raras, crises existenciais e cortes de cabelo apocalípticos. 
Que é difícil estar atento a três chatices ao mesmo tempo, e as chatices, como os raios, não deveriam bater na mesma terra duas vezes.
Claro, depois a vida acontece, as probabilidades desacontecem, e ai que rrrrraaaaaiva!, palavrão, pontapé-na-cadeira (é assim que se ganham unhas negras), como teve a vida o descaro de acontecer assim, que matemática é esta?

Raiosmepartam, que isto é uma luta constante que não acaba nunca, e eu só queria doisminutinhosdedescanso.

Bom, bom. 
Vou somando azares em conta corrente imaginada para o efeito. Fico contente por saber que um dia vou ganhar o euromilhões, ser chamada para um emprego de sonho e ter uma casa com vista para o rio. Matemática pura! 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Nos entretantos, o corpo

Não sei se é do calor ou dos trabalhos de bricolage e carpintarias (sim, sim, os livres têm sido ocupados a pintar móveis comprados em promoção, montagem de tomadas eléctricas e sistemas variados, restauração de velharias apanhadas na rua e conserto de outras tantas coisas), mas tenho sentido o corpo inquieto.

Se cruzo a perna, deixo de a sentir aos cinco minutos, a mão anda ansiosa e fugitiva, e quer escorregar até ao fim da linha antes de cumprir com as letras que a mente comanda, e o braço também quer correr, galopar ao vazio, mas está quieto e repousado e se revolta por dentro, como latejando. 

Tenho um burburinho sussurrando nos dedos, encurralado entre o desassossego e moleza natural dos dias quentes de janela aberta. De noite estico o corpo e sinto uma multidão em marcha nos músculos, como se estivesse correndo, como precisasse correr, e parada não consigo porque me efervesce a carne.

Tenho uma multidão que me corre as pernas em hora de ponta, quietas mas não sossegadas, gritando e apregoando em voz muda, como um mercado em frenesim sem som.

Felizmente, tenho também um Rodolfo, que acorda cansado comigo porque que fica comigo acordado nestas noites de multidão pelos veios das pernas, pelas vias da mão, e me adormece o burburinho e me acalma o desassossego dos músculos até a multidão dispersar, até eu cair de sono e, comigo, as dores da multidão que me corre pela pele.

Sorte não é não ter EM, não ter surtos, não ter dores, ter viagens, ter aventuras, ter palavras que enchem vazios, que a cada um lhe cabe o que lhe toca e a vida vai chovendo como pode.

Sorte é ter um "rodolfo" nas noites de dilúvio de bichos carpinteiros e multidão, que correm as pernas paradas e voam as mãos quietas como se a carne estivesse a acontecer por trás do que os olhos não vêem nem sente o coração.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

emigrante-com-net, emigrante feliz

Não não, não fiquei soterrada sob escombros físico-emocionais de um qualquer desastre natural ou psicossomático, nem perdi o amor à palavra ou à aventura, nem abandonei o sonho de Buenos Aires. 
Foi precisamente por causa dele - do sonho - que desapareci por uns tempos; que ao vagaroso-doloroso processo de transformação do estado desempregado-desalojado-despapelado e semi-teso me esqueci de acrescentar um desesperado não-tenho-internet, característico de qualquer estado sem-lar que, até há pouco tempo, me definiu.
Mergulhei no pesadelo imobiliário do assina-contrato, entrega-chave, dorme-no-chão, contrata-água, contrata-luz, contrata-internet, só-daqui-a-três-semanas-señora, tem de ter bilhete de identidade argentino señora, mas eu sou portuguesa señor, e, depois de armar vários pés de guerra com o canalizador que-diz-que-vem-mas-não-vem (e eu com torneiras a pingar), com o serralheiro que-diz-que-liga-mas-não-liga(e eu com a janela sem poder fechar) e com várias companhias de internet que dizem que instalam mas não instalam (e eu sem mundo, señor!), saí  f i n a l m e n t e  do outro lado do limbo nesta bonita data de 12.12.12 com casa semi-montada, um colchão a fazer as vezes de sofá e uma recém-estreada rede de internet wi-fi que emite cânticos de glória por todo lar! Saudades, mundo!

Verdade-seja dita (o processo de emigração é, com efeito, vagaroso), esta é a única vitória do mês. Continuo sem papéis e demais carências; mas vejo a vida a acontecer aos poucos, entre uma mesa pintada à mão com cores garridas e gargalhadas, e o Verão que vai despontando na cidade e aquecendo as ruas e os suores. Sim!, Buenos Aires amanhece cada vez mais cedo e anoitece cada dia mais tarde, os sábados são de sol e os pés saiem à rua de chinelos, como os ombros que descalços vão. Continua a ser estranho reconhecer (?) nas montras, nas rotinas e na porta da vizinha da frente, um Natal a 40 graus de temperatura, mas é bom acordar com luz e sem lençol, preguiçar nos parques de Palermo, e jantar de janela aberta e abanico na mão.

Confessando o preguiçar, cabe-me também confessar uma novidade: pus um fim ao primeiro acto da minha curta carreira de camarera. Que o chefe era casca grossa e nos falava como se fossemos escravos comprados em promoção, e eu, que nesse dia até tinha a mão mais dormente do que o costume e estava de mal com a vida (e o dia tão bonito e eu ali a suar de avental, e o outro a mandar bitaites, e eu de mão dormente e com preocupações mais sérias, e o outro a tecer considerações críticas sobre a qualidade da alma alheia, mas o que é que isso tem a ver com o saco de farinha, e logo eu tão séria no meio de tanto malandro, e agora viro alvo de ataque verbal, não estou para isto), decidi sem dar por isso: nem é tarde nem é cedo, ninguém tem de aturar isto, muito menos a mãozinha de enxota-nojos e as costas viradas, e logo eu que tenho EM e Mau Feitio, e que já me bastam para me chatear, e fui! Atirei com o avental a meio da tarde do lugar onde trabalhava, bati porta, e atirei-me eu à rua; recebeu-me uma liberdade com sabor a sol de verão e uma Buenos Aires palpitante, pronta a receber-me a full time nos seus dias.  

E assim vem acontecendo a vida: com um salário no bolso e os dias mais livres, dedico-me agora a gozar o verão e a Cidade, enquanto preparo a casa para o(s) novo(s) ano(s) que aí chega(m) - pinta mesa, compra cama, uma manta ali e um pano aqui, faltam panelas, faltam copos, faltam pratos e somos 5 ao jantar, faz as contas e compra mais um, que para o mês que vem compramos dois, falta vir o canalizador e o serralheiro, mas o homem da internet já por cá passou. Preparo-me também a mim para a visita à terra-Mãe e terra-Casa, que o Natal é tempo de família e as injecções estão a chegar ao fim e é tempo de ir renovar o stock. 
E claro: continuam a divertir-me os dias o sotaque argentino (che, boluda!, fijate si pasa el colectivo!), o totoloto dos dias de verão com os dias de dilúvio, os programas pontuais de uma cidade em constante estado de diarreia cultural (poucos, que o futuro é incerto e os pesos são contados) e a pergunta en serio que no sos argentina?? (ok, ok, eu me confesso: como se me abre o sorridorgulho, que tonta feliz!), e com isso se me alegra a vida, no espera-nãoespera, no vai-nãovai, no liga-nãoliga.
Para já, tenho casa e internet e sou, por isso, uma emigrante feliz!