Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Zona cafetera

Bogotá passou correndo, e ainda lhe demos umas voltas por fora: visitámos a abuelita en La Mesa, do outro lado da montanha, onde almoçámos pela segunda vez, porque também aqui o carinho se expressa com comida; apanhámos o comboio a vapor que rasgou a cidade-alta em dois, empurrado pelos adeus de todo-homem que o via passar, até uma terra chamada Zipaquirá; tivemos um assado de família-toda numa quinta perto de Facatativá, carinhosamente chamada "La Faca", nós mordendo maçarocas de milho tiradas do carvão ao sol, e um bando de música animando a tarde (os ritmos novos, o vallenato, o porro, a cumbia, o fandango, os outros, as timidezes despidas a dançar). Gargalhadíssimo, tudo.
Finalmente, no fim da semana - alimentados, apaparicados e bem dormidos -, comprámos o mapa de estradas da Colombia, partida, lagarta, fomos. Com as injecções contadas para um mês de viagem, as placas de gelo bem frias, e um telemóvel barato no bolso desenrascado pela família dos meus amigos, por si cualquier cosa
Partimos para a zona cafeteira, terra de vilas coloniais, praças vivas e varandas de madeira maciças, as madeiras velhas mas não gastas, as cores repintadas com boa intenção, os cavalos, os chapéus de palha, as plantações de café. Repiso os caminhos e as aldeias de que ainda me lembro, e sorrio porque reconheço as esquinas e os velhos: talvez as estradas de terra ainda tenham as minhas impressões!, mas agora estou mais pesada, tenho EM e injecto-me todos os dias. Pergunto-me se é mais surpreendente o meu regresso a estas terras perdidas passados estes anos, ou o facto de aqui estar de geleira às costas e uma semi-rara EM aos ombros, mas rio-me e não sei responder, e assim vou entretendo os pensamentos montanhabaixo. Voltar aos mesmos lugares sem poder ser a mesma pessoa; quem diria que aqui voltava?, que assim voltava?
Mas a caminhada de volta montanhacima custa tanto como dantes, e não mais, e eu ganho o dia. 
O Don Elías apenas subtilmente acusa os anos, eu reconheço-o, ele reconhece-me, e a casa continua acolhedora. Volta a levar-nos pela sua plantação de bananas, que nascem de árvores macias como borracha, e de ananazes, que nascem filhos-únicos de árvores que se lhes parecem, e de café, que são bagas amarelas e vermelhas e parecem fruta e não cheiram ao que esperamos; e nos volta a ensinar todoprocesso (colhe, descasca, seca, descasca, tosta, moi), desde a semente colhida à bebida quente, que nos serve no fim do passeio, junto à cozinha de bambu. 
Fechámos este primeiro ciclo com Santa Fé de Antioquia, chegada com a noite e com a feira na praça - as praças são os corações palpitantes destas terras -, a imagem da mesma Colombia cafeteira, demarcada das paredes, dos ombros descalços, dos chapéus de ráfia, da aguardente, do café, as varandas de madeira (velha, não gasta) e as ventoinhas e as portas abertas à rua. Desenrascámos a dormida no piso de cima do salão de bilhar do pueblo, os velhos sábios e eu única-mulher, a música popular e o chocar das bolas de abrir o jogo, a banda sonora das noites no quarto sem tecto. 

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

As meninas têm-se portado bem

Entre parêntesis.
Até agora, a dona, a dita e a outra (por ordem de cuidado, a catarina, a em e a lancheira) têm-se portado bem - e isto que saímos do fresco-nas-orelhas da montanha e descemos até ares mais abafados e caribenhos, onde mesmo quando chove os pés se querem e mantêm descalços e os braços ao léu. Até agora, nada de dormências, mariquices ou especialidades, e o cansaço também não me tem afectado mais do que a qualquer mortal - estou em crer que o estado-de-viagem tem um efeito placebo que adormece os formigueiros (recomendando-se, portanto).
Os barrancos onde nos temos abrigado têm sido solícitos perante o pedido de um espacinho no frigorífico da casa, as placas de gelo têm cumprido sua função e as injecções podem gabar-se de percorrer os mesmos passos que a mochila-companheira sem percalços nem chatices de maior.
Sigamos pois ao ritmo da viagem, que se quer dançada e bem corrida - e com mais tempo e melhor internet lhes contarei por onde têm andado as meninas; apaziguados os medos, que se têm portado bem.

sábado, 8 de setembro de 2012

Bogotá-a-alta


Aterrei em Bogotá no dia 28 e encontrei-a tal como a recordava: gigante, caótica, difícil de entranhar. Bogotá-a-alta é mais difícil do que comer chinchuyos mal fritos (que são intestinos de vaca e se chamam chinchulines na argentina) ou acabar com todos os componentes de um pequeno-almoço tipicamente colombiano (cumulativamente e por ordem cronológica, café, que aqui se chama tinto, leite com chocolate, sumo de guanabana ou lulo ou outra fruta mais ou menos desconhecida, caldo de carne e batata, tamal com milho, que é um naco de coisa embrulhada em folha de árvore de banana, mantecada, fruta em pedaços que pode ser lulo ou manga ou  outra, ovos, batata cozida e pão com manteiga): é preciso um esforço. É uma cidade dura, seca e sem floreados, onde as ruas são geométricas e têm números e não nomes. O Rodolfo, meu fiel companheiro desta e de outras viagens, é destes que sabe sempre onde está o norte, e assim se orienta. Eu? Eu perco-me, apesar da matemática. Deixem-me, então, explicar-vos a cidade à minha maneira. 
Bogotá corre, quase toda ela, ao nível do chão: as casas são baixas e as ruas são simples, e a sensação constante é a de que estamos quase-quase a chegar a algum lugar. Os bairros são de cimento e tijolo, a maior parte deles não pintados, e as ruas são coroadas por emaranhados de cabos e telhados de chapa, que lhe emprestam um falso ar clandestino ou improvisado. 
Bogotá-inquieta é também Bogotá-a-alta, porque repousa num planalto a 2600 (!) metros de altitude e não tem estações do ano, mas apenas fresco, frio ou muito frio, e nasce entre morros, colada à montanha do santuário de Montserrate, do alto da qual (3200m!) se ganha compreensão da cidade que não acaba e corre rasteira.
E depois, ao nível do chão, a rua move-se e se apura e borbulha em movimento e comércio de bairro em todos os bairros. Lojas, oficinas, armazéns, bancas, carrinhos, caravanas e estantes improvisadas compram e vendem tudo o que se possa imaginar por toda a cidade: jarros, alguidares, de plástico, de ferro, parafusos, colchas, caixas de fruta, com e sem fruta, fotocópias, minutos de telemóvel, peças de carro, peças de máquina de lavar, peças generalistas, pneus, portas, cabeceiras de cama, toalhas (lisas, padrão ou fantasia), molduras com vidro, molduras sem vidro, vidro para molduras, pêra-abacate com sal, chapéus, tinto. Correm a cidade bicicletas com fruta, carrinhos com brinquedos, camiões velhinhos com vigas e bobinas, peões com todo-tipo de safa-tostões. Es que acá en Bogotá el comercio es como, pues, muy informal. Qualquer coisa que se precise ou nem se imagine necessária se encontra nas ruas de Bogotá, como num gigante mercado de rua.
Apesar da dimensão, da estranheza já repetida e da minha total desorientação, volto a encontrar também, no segundo em que aterro pés, a minha querida Colombia-casa, que volta a acolher-me de braços abertos, mesa posta e tectos vários. O meu querido Juan-prestes-a-casar, e toda a sua família alargada e da sua noiva, e dos irmãos e dos avós e dos amigos e dos outros, recebem-nos nas suas casas e nas suas famílias como se delas fossemos, e voltam a lembrar-me todos os dias Bogotá-vida, Bogotá-diária e Bogotá-íntima, com seus humedales escondidos (pântanos de estranha tranquilidade que salpicam a cidade), seus refeitórios que servem, com o menu do dia, a sopita del dia e pratos obscenos de fruta como entrada, seu sentido de família e de humor, seu rebuliço, seus gritos alegres, a musica, a ginga, a hospitalidade e a gentileza sem limites desta gente colombiana. Temos tido sempre alguém que nos dá boleias, conversa, histórias, lendas, almoço, dormida e café, e temo-nos deixado levar, deliciados e sem pensar. 
A simpatia pelos cantos e pelos emaranhados de fios, pelos tectos baixos e pelas ruas-vielas de Bogotá renasce com o jeitinho colombiano: que a cidade esteja cheia de colombianos ajuda a que uno se encante.  

Bogotá-a-alta