Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Emigrantes, ponto zero

O Rodolfo disse-me, uma manhã; acho que temos de ir andando, e eu não posso negar que reagi com espasmos histérico-ansiosos - mas já?mas como?mas de certeza? O peito saltou, o sangue ferveu, borboletas-como-dinossauros-em-ácidos no estômago. 


E ele escusava de me explicar o que eu já sabia: que os processos de recrutamento pareciam começar a espreitar, que no verão argentino (dezembro, janeiro e fevereiro) não ia acontecer nada, que começar em fevereiro era muito tarde e que a emigração, dado assente, deveria ser encarada.

Ai ai ai ai ai, pensei eu em calças rotas e t-shirt de publicidade XL recortada em coisa maneirinha, o turbante na cabeça e uma pinta muito pouco civilizada para habitar cidade em modo sem-mochila!

A coisa já fervilhava e nos esperava e nos chamava. A coisa estava aí. E eu bem sei que os nervos são coisa pouco amiga dos formigueiros (não cansar, não stressar, não emocionar, não excitar, não agitar, não ansiar) - mas os primeiros estavam ao rubro, e os segundos quietos. 

Sem alternativas de senso comum, antecipámos a coisa: comprámos um voo de última hora, arrumámos a mochilas, contámos os pares de meias (eu tenho 3, e tu?), comprámos uns jeans de fraca qualidade e bom preço para compor a figura, e fomos. A emigrar oficialmente, a BUENOS AIRES!

Caros: cheguei a Buenos Aires no dia 11 de Outubro - e eu não dizia que gosto de simbolismos?, de datas, de cores vestidas, de gestos e rituais? Nem de propósito: aterrei na minha cidade querida, retornada e pronta para o duro processo de parto de todo-emigrante, no exacto dia em que cumpri dois anos de diagnóstico. 
Já?, parece que foi ontem! 
Só?, pareceu uma eternidade!

Percebi a coincidência na véspera do embora, disse-o ao Rodolfo, abracei o Juan sem vontade de partir, nervosa e séria, e entrei no avião.
Depois de uma viagem inquieta e de uns 'pssst' grunhidos ao velhinho que roncava como um javali-sem-mãe em cima de mim, aterrámos na Argentina às seis de uma manhã amanhecida com sol e mediaslunas, e uma grande sensação de renascimento e dia novo. E se tenho um surto em plena Argentina? E se acontece alguma coisa? E se a "eleita" decide agravar-se do outro lado do mundo?
Mas ai!, não se imagina a luz da minha cara! Nem a morada errada que levava da minha amiga Paula (e a meia hora que demorei a aperceber-me disso), nem o facto de, entrenervos, lhe ter dito que chegava na sexta e não na quinta (e a meia hora que demorei a aperceber-me disso), nem nada, nada; o estado ansiolítico rapidamente se tornou em alma, vontade, sorriso pateta mirando la ciudad acabada de acordar. 

Não emocionar, não excitar, não agitar, não ansiar? 
Não, continuo a não saber como se faz isso.

AQUI ESTOU. Para o que vier, retorno a esta maravilhosa cidade, para estudar direitos humanos; para a viver e a gozar com mais tempo, mais calma, mais ânimo. Mais saudades de Casa, o sentido da língua-pátria e saudade-terra mais crescido, e  - a grande novidade? - com uma EM novinha em folha; com direito a injecções diárias, pés de lã com os se's, regressos semestrais para consultas de rotina e papeladas para as necessárias doses.
Mas com a sensação de que estou a fazer um caminho certo, e a EM que se adapte, que esta é a vida que eu escolhi.

Emigrantes, oficialmente - com direito a cansar, stressar, emocionar, excitar, agitar, ansiar.
Acho que acabei de desmaiar de nervoseuforia.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Era uma vez a Colombia


Há história difíceis de contar, e a da Colombia é uma delas.
A Colombia (minha Tierra querida) é mãe de um povo que amo, povo-família, povo-casa, senhor de uma amabilidade inigualável e gentileza sem fim, a la orden, que le vaya bien, como amaneció?, muy gentil, para servirle, senhora?, que dios la bendiga.
Dentro desse povo está a boa alma de um Amigo que me dedicou uma amizade e uma ternura sem limites nem compreensão, parida em jeito precoce com poucos meses de gestação, e aquecida à distância com mais pensamentos que palavras, mais rezas que conversas e mais coração que café.
Dentro deste povo estão as almas de todos os membros desta família-casa, de todas as famílias-casas, a avó que nos responde ao milésimo gracias do dia com um apaziguador tranquiiiiila encolhido nos ombros, a diana que põe a cafeteira ao lume assim que nos ouve os passos matinais no andar de cima, a família bravo-pacheco que abre espaço à mesa de qualquer-hora, o alejandro que nos acompanha todas as ruas e todas as conversas, os jantares de família que nos acolhem sem timidez, a mãe do juan que me cumprimenta e não me larga a mão, si se acorda de mi?, a mãe da mariann que me deseja várias vezes a cura e que me olha como se mergulhasse em mim adentro, os irmãos, os primos, os tios, os amigos, de um lado, do outro, às avessas.
Dentro deste povo estão todas as almas anónimas que se adentram na viagem de uno. Não pude completar uma viagem de autocarro, barco, lancha, canoa, pés, sem conversa puxada pelo ser do lado, pergunta, curiosidade, en serio?, interesse; e há uma certa inocência na facilidade com que soltam as indagações interiores em voz alta, sem timidezes nem falsos pudores.
Mas em todas estas almas, também reconheço outras histórias, partes daquela História que é demasiado complicada. É que dentro deste povo, também há uma história difícil, convivida a diário e em modo actual, mostrada nos jornais, nos testemunhos, nas primeiras e mais óbvias perguntas estrangeiras. 
A violência da história colombiana - do narcotráfico, das guerrilhas, dos grupos paramilitares, do exército, das tentativas de pacificação mais violentas que o próprio soneto - é devastadora por dentro e perseguida com o olhar por fora, e marca como sangue pisado a alma do povo querido.
Bastaria contar a história da Luisa, colombiana emigrada aos states (como mil outros peregrinos do american dream, de que os próprios irmão da mariann são exemplo) e regressada à terra-mãe, que teve de mudar de distrito para que a filha - que falava inglês nativo e chamava a atenção - não fosse recrutada à força pelos paramilitares, como uma boa aquisição; as amigas da Luisa disseram-lhe, um dia: "Luisa, mejor que se vaya". E a Luisa foi.
Bastaria contar a história do guerrero de dios, velhinho terno e encarnecido que conheci numa hospedagem familiar em Cartagena, de faces tatuadas com manchas azuis de prisão e discurso meigo e empático, mais tarde confessado paranóico e vigilante, dados os 18 anos de comando superior de um grupo de paramilitares (YO apazigué Cartagena), de uma vida vivida na selva (no puedo dormir en la cama, me duermo en el suelo, qual patriarca do marquez), e de 12 anos de prisão por massacre (massacre, dito sem expressão); o mesmo velho senhor que tinha ataques de ansiedade e suores frios de quando em quando, e que me abraçou na despedida e me desejou mil graças com as mãos apertadas.
Em Cartagena, vimos três exposições de crudíssima fotografia sobre os refugiados internos e sobre as aldeias sobreviventes sob ameaça múltipla. Nos jornais, todos os dias correm a tinta as notícias sobre os quase-acordos de paz, o quase-fim, as quase-negociações. Nos tribunais, começaram a ser reivindicadas as devoluções dos terrenos expropriados pelos grupos armados nos últimos muitos-anos.
O problema ainda existe? Claro que sim (e posso dizer isto agora, sã e salva das leoas da familia).

Mas continua a não ser essa a história que quero contar. A Colombia é, acima de tudo, família, casa, pão, amor. É uma terra amável para os que lhe são estranhos, que os recebe e os acolhe à mesa, com humildade, com curiosidade, com humanidade. É uma terra onde se dança a dois, e onde se ensina a dançar quem troca os pés, um lugar que conjuga no mesmo espaço a selva amazónica, os picos nevados, as terras coloniais, as cidades-metálicas, o caribe e a montanha; os pretos, os brancos, os assim-assim, os índios, os mestiços, os retintos e os indistintos. A Colombia é surpreendente, mesmo da segunda vez.

Saio da Colombia - sim, sim, saio da Colombia (para onde?, já verão) - como sempre, a custo. Cheia de amor e de respeito e de admiração por esta tierra querida e por este povo extraordinário.
A história complicada, a seu tempo, se resolverá. Assim espero.

El riesgo es que te quieras quedar.
(video oficial)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Cartagena-Maravilhosa


Cartagena de Indias.
Depois de uma aventura (pouco) gozada no veleiro, encostámos amarras no cais clandestino de um bairro de lata e zinco, e apanhámos uma lancha até à Cidade: depois de muitas horas em estado de semi-desidratação (que a água também se vomita, descobriram alguns) e pele estufada pelo sol, mais uma estupidez de voa-saltos que nos deixou, por fim, na praia suja de Boca Grande, encharcados até aos ossos, gargalhando nossas caricatas figuras. Espremidos e retorcidos, a segunda ironia da tarde chegada foi perceber que os pés em terra firme, ao fim de dois dias em dança-balança, também enjoam. Várias horas passariam até que pudéssemos recuperar a estabilidade própria da alma e do ânimo.

Prossigamos... Cartagena de Indias. Continua extraordinária. Exótica, caprichosa, decadente, magnífica.
Lembro-me de ter lido há uns anos qualquer coisa sobre o sexo das cidades, e de como a sua arquitectura, as suas linhas e a cadência nelas gerada, as definiam como cidades masculinas, viris, energéticas ou femininas, sensuais, misteriosas. Não me lembro do caminho teórico, mas Cartagena é, definitivamente, uma mulher de botero: exuberante e debochada.
Jóia da coroa do império colonialista e porto-rei das rotas de comércio de outros tempos, a cidade tornou-se símbolo de luxo e decadência, com um toque de romantismo.
A cidade amuralhada repousa lad'a'lado com a zona moderna, em irrepetível exagero e harmonia - como dois tons estridentes que se condizem. As pedras e as madeiras envelhecidas, os tectos dos palácios coloniais e dos casões senhoriais, as palmeiras maduríssimas, as flores estridentes, a torre do relógio, batem certo com o tom de extravagante "miami" que os sublinha, ao fundo, seus arranha-céus brancos e seus envidraçados modernos. Em comum, o tom de sumptuosidade, de ostentação e de exotismo.
Entre-muralhas, as ruas são estreitas mas sólidas, as casas majestosas, as varandas imponentes, e delas continuam a cair em chuva as mesmas flores garridas. As portas altas de madeira trabalhada continuam abertas - porque Cartagena é quente todos os dias e todas as noites - e as gigantes ventoinhas continuam girando nos tectos, que são de não menos de quatro metros, altíssimos e frescos. Os cafés mais populares dão portas abertas para duas ruas, e parecem frescas arcadas, mas têm tecto e têm portadas que se encostam, encaloradas, nas paredes dos almoços que ali se servem, a mesma carne com arroz e feijão de sempre.
Fora-muralhas, as ruas são estreitas, porque encolhidas entre arranha-céus, majestosos, modernos, limpos, rodeados de hoteis de cinco estrelas, casinos e clubes nocturnos.
As paredes da cidade amuralhada são garridas e bem pintadas - amarelos torrados, vermelhos de sangue, azuis fortes, como as calças de algodão do suado homem cor-de-azul - preto pretíssimo - que dança frenético na Plaza de San Domingo; os arranha-céus de Boca Grande são brancos e envidraçados, ao jeito Calatrava (ponte da Mulher, Gare do Oriente...), como combinados dominós jogados no tabuleiro. 
Escolhemos entre-muralhas: dormimos numa casa velha, de cozinha antiga e varanda em ruínas, com os cotovelos na rua e um fantasma regular, alma perdida de uma dama antiga que gosta de passear pela tijoleira partida e buscar companhia na casa que em tempos habitou. Diz-se também que as paredes escondem mapas e ouros, escondidos aos piratas que se abordavam no horizonte, e que, mortas as familias, os piratas fugiam ao mar, e as paredes ficavam para trás, recheadas de história e de incógnitas.
As ruas à noite transformam-se e a cidade resulta fantasiosa, boémia e extrovertida. De dia, os cafés, as boutiques, as frutarias, as padarias, e as pretas na rua a venderem talhadas de manga e papaia  melancia, tudo é exótico e tudo é calor, as pessoas vestem-se de branco e de cores e soltam suspiros e cantigas pelas esquinas.
Descrever Cartagena é roubar-lhe em palavras aquilo que a cidade-mulher (mulher voluptuosa, descarada, majestosa) mostra, toda-oferecida, em sentido, cadência, compasso.

Já ouvi dizer que não se pode morrer sem a Nápoles. 
Eu acho que não se pode morrer sem ir a Cartagena.





Marinheiros de água doce

Não havia dúvidas: era ir!
Depois de quinze dias divididos entre as vilas de café plantadas nas três caudas colombianas dos Andes, e as vilas de peixe debruçadas na beira-mar do Darién, o passo seguinte pousaria na magnífica e decadente Cartagena de Indias, que eu ansiava repisar. As voltas por terra eram longas, os transportes careiros, e a oportunidade surgiu: cruzar o mar desde Sapzurro e entrar na cidade em veleiro? Quarenta horas de mar-alto? Antes fossem quatro dias, e melhor seria. A ideia pareceu-nos ousada, romântica e original, e comprou-nos de imediato.
Reforçámos o carregamento de arroz, cenouras e água, e esperámos que Lucho, el Capitán, desse o aviso de partida, lido no céu e nas tempestades de véspera.
Lucho, el capitán, carinhosamente baptizado Capitán Catalán, era um catalão de 50 anos, estatura quixótica, pele curtida pelo vento e veias engrossadas pelo sal que lhe entrou sangue adentro.  Abandonou a pátria e a aborrecida profissão de fotógrafo (pausa para suspirar), e, depois de uns anos em voltas dadas em cargueiros de pesca de bacalhau nos mares do norte, comprou um pequeno veleiro azul, que baptizou de Kawama (que diz que é uma espécie de tartaruga) e veio dar voltas para mares mais quentes. Para sobreviver, leva turistas de Cartagena a San Blas, no Panamá, e para viver, faz travessias atlânticas que lhe agitam o peito e lhe deixam histórias. Dono de um discurso ébrio e desarrumado - por personalidade e pelos oito charros diários que fuma -, Lucho ganha uma surpreendente lucidez quando avalia a tempestade que ainda nao acalmou ou faz as contas à agua necessária para cinco grumetes e 40 horas.

Chicos, que mañana nos vamos, ciciou o capitan, ao fim de quatro esperados dias.

Lá partimos, os cinco bravos (nós, dois urugaios e uma sueca-romena) e o seu capitao, cheios de vontade no peito e luz nos olhos.
Dois dias num veleiro? Uma aventura!
Ver o céu em alto mar? Magnífico!!
Chegar a Cartagena de Indias, junto à torre do relógio, de barco e com o vento?? Irrepetível!!!

E irrepetível foi, como vos passarei a contar.
Nos primeiros vinte minutos de viagem, pressentimos o enjoo - mas pensamos, já já nos habituamos ao embalo do mar.
Ora!
O vento não movia um cabelo e o veleiro não velejava nem cortava as ondas, mas se limitava a seguir o passo lento do mar e de um motor ligado em primeira velocidade - sobe a onda, desce a onda, sobe a onda, desce a onda, eu via a proa a subir e descer num vagaroso e enjoativo compasso, e com ele todos os meus orgãos a flutuar. Olhar o mar revoltava o estomago, fixar o barco revirava a cabeca, fitar o chão era chamada ao vómito a pés juntos. Os cinco entusiastas que subiram a embarcação em sorrido alvoroço correspondiam aos cinco cadáveres calados que tentavam concentrar-se num ponto fixo no horizonte, cada no seu e entregue à missão individual de minimizar o enjoo do barco, suores frios, expressão ausente, só o capitao cantarolava, entre charro e anedota - o cheiro adocicado dos primeiros piorava fortemente o enjoo generalizado, e as segundas ja nao eram ouvidas ou respondidas. Uma divertida miséria! Três vómitos depois (nenhum meu, faço notar, embora não me possa gabar de grande rigidez de disposição), o sol a pique, os corpos amontoados junto ao mastro para partilha de sombra, o nosso estado dava vontade de rir a quaisquer deuses - coisa que de vez em quando acontecia, se cruzávamos os olhares e nos consolávamos: so faltam 30 horas, gargalhada, sarcasmo. Estávamos qual anedota de náufragos!
Cozinhar?, qual quê!, que a cabine triplicava o enjoo, como caixa de fósforos em movimento, e entrar  nela era (como o comprovaram dois anónimos) vómito-certo!, mas também não importava, que a comida não era benvinda aos delicados corpos descompostos, e só o capitão continuava a enfardar, dada a fome dado o charro (e já lá iam dez). E quem diz que me conseguia concentrar e manter o pulso firme para me injectar? Tive de fechar os olhos para não enjoar ao fixar na caneta azul e encarnada - ao mesmo tempo que fazia um esforço tremendo para não deixar a mão ser embalada pelo enjoativo vai-vem das ondas, do barco e do universo girando à nossa volta.
Uma trágico-comédia!

Avistámos, enfim, Cartagena, como uma miragem no deserto, rindo de alegria e das nossas figuras - dois dias no mar, e nós feitos farrapos humanos!

Ainda assim, nem tudo foi apocalíptico: no meio do flagelo marítimo, vimos cardumes de peixes voadores sobrevoando o mar, que são como borboletas gigantes com escamas, e houve espectáculos de saltos de atum; e houve um momento, um momento breve, em que apareceram golfinhos junto ao barco, e, exibicionistas como só os golfinhos e os homens são, se encostaram à proa, o Lucho gritava-nos, assobiem que se deixam provocar, e nós assobiávamos (bom, eu não, que não consigo nem chamar um cão velho), e eles saltavam mais e davam piruetas, e nadavam junto à proa, em corrida connosco. Nesses brevíssimos minutos, perdemos a descomposição, corremos à proa, assobiámos, rimos, parecíamos miúdos, nós e os golfinhos, infantis, brincalhões, efusivos.

Valeu a pena passar o cabo das enjoadas tormentas para ver golfinhos a saltar? Talvez.
Valeu a pena, certamente, para saber que o não voltarei a fazer - e afirmo-o divertida.
Vale certamente a pena poder olhar para trás, depois das patéticas e cómicas horas de horror, e rever-nos a entrar no barco de cabeça erguida e corações ao alto. Pobres nós!


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Rumo à costa (el Caribe!)


A chegada ao Caribe foi a chegada a Turbo, cidade descrita na literatura do género, como uma cidade suja, caótica e perigosa. A verdade é que a nossa chegada podia servir de cena inaugural a um filme de gangsters de fraca qualidade. O autocarro, que devia ter chegado a umas seguras sete da manhã (hora condigna onde o sol já vai alto e todos os perigos ilumina), atirou-nos porta fora às ainda escuras cinco. Os primeiros segundos foram deliciosos: o autocarro a afastar-se, e nós ainda atordoados, aqui?, com esta pinta?, onde estamos? A rua sombria, a noite ainda cerrada, e o ambiente era o do cais do sodré a más horas, antes da era rosa e pensãoamor. Os vultos iam surgindo das esquinas, cambaleantes (para nós,  os vultos, para os vultos, as esquinas), e as vozes eram atabalhoadas e em jerga. Da tarde para a madrugada, passámos de uma nostálgica vila colonial de cavalos e velhos semeados na sombra das árvores para uma cidade semi-urbana, caribenha e rufia. A noite era ainda ébria e não-ressacada, apenas povoada por homens gingões e poucas mulheres de má vida (noto que as cidades de cais têm esta tendência de vestir um ambiente boémiodecadente). Bem-vindos a Turbo! Nada para ver e uma barqueta para apanhar às oito da manhã. Como tínhamos fome de café, e porque não dava senão para mergulhar a espera naquele submundo, aproximámo-nos do carrinho de mão fumegante que acabava de virar a esquina: dois tintos, mochilas no chão, rabos no asfalto, e aí esperámos as voltas do relógio, vigilando divertidos as bebedeiras e os olhares desconfiados da cidade.
Carrinho fumegante

Quatro tintos depois (que, relembro, são cafés e não vinhos), passadas as bebedeiras e nascido o sol, lá percorremos os 4 quarteirões até ao porto (que um jovem alcoolizado ainda tentou, pouco convincente, levar-nos na sua mota, eu, ele, o Rodolfo e as duas mochilas tamanho-humano, por uma quantia "simbólica"), e lá percebemos a chegada ao Caribe. 
O Caribe: os locais são mestiços, mulatos ou retintos. Os homens andam de camisa aberta e as mulheres rebolam. As conversas têm mais descaro, as gargalhadas são mais estridentes e gritam mais soltas, os piropos também, as cores ressaltam mais à vista, mesmo que desbotadas. Pessoalmente, distraio-me com os cabelos delas: os entrançados, os enlaçados, os caracois deixados soltos, os matagais sempre-em-pé, as vaidades esticadas, as bolas enroladas no alto da cabeça com falta de pachorra para as voltas. Deles, prendo-me nas conversas e nos gestos: as piadas em voz alta, as gargalhadas partilhadas com o mundo, coça a barriga, boca aberta, dentes alvíssimos, tez pretoazul. Os olhos enormes, os mil tons de preto, castanho, café com leite, mais café, mais leite, as peles lisas, tesas, os rabos redondos, os traços perfeitos. 
E depois, entrámos no caos do cais, que eu tanto gosto. Vai pássaro, vem família, vai corda, vem homem, vai café, vem saco. Grita, corre, senta, espreguiça. Parte, chega, pesa, pousa. O porto cheio de albatrozes, pássaros gigantes meio bicho meio bico que não podem fitar os pés sem esventrar o próprio peito ou partir o bico no chão, dependendo da agilidade de cada um. Os barcos todos de madeira pintada, com nome de mulher ou de reza.
Cidade de Cais

Meio bicho meio bico

Finalmente, com quatro horas de atraso, partimos - uma lancha velha semi-madeira com motor de tractor; e como nos divertimos! Depois de duas voltas atrás dentro-dágua porque (i) nos esquecemos de uma família em terra e (ii) nos esquecemos do combustível, ah!, afinal não, lançámo-nos ao mar em alta velocidade e não imaginam!, a velha barqueta saltava-voava rente à água, e nós do banco, como uma montanha russa, pás!, pás!, pás!, a velha lancha pronta para as curvas, nós surpreendidos, e a velocidade a obrigar o barco a saltar por cima das ondas sem furar. A linha da costa que seguimos era de selva a pique mar-adentro, densíssima e pás!, mergulhava sem espaço a areias ou intermédios, mergulhava de cabeça, e o barco aos saltos, pás!, pás!, pás!, e eu só pensava que se os meus irmãos estivessem ali, se estariam desmanchando a rir como eu, o barco ia aos saltos de estupidez, pás!, pás!, a velha senhora atrás de mim ia agarrada a banco, mas o banco era uma tábua solta e também saltava, um salto demasiado alto lá magoava a bunda, as mochilas e as maletas lá à frente saltavam também e quase acabavam no fundo-mar, mas eu continuava a rir a bandeiras despregadas como se tivesse seis anos. Três horas nisto! Não me divertia assim há muito tempo. Eventualmente, a linha da costa fez uma curva, e ali rés-vés ao Panamá, chegámos a um vilarejo chamado Capurganá.


E o melhor de tudo é que as injecções continuam frias (benditas placas azuis) e as dormências continuam as mesmas e não mais. Próximo passo: missão calor (que o caribe derrete os ossos). Vamos a isso!