Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









terça-feira, 13 de novembro de 2012

Enquanto Espero, Emigrante

Perdoem-me a ausência.
Tenho estado no limbo da Emigração: estado de espírito, de sítio e de necessidade, onde falta é a palavra de ordem (de tempo, de papéis, de trabalho, de dinheiro, de casa, de Casa).
das esquinas e das calçadas,
dos cafés e 
dos costumes e dos miradouros
da minha Lisboa-quintal
Que o trabalho não sai sem papéis, e os papéis não se dão sem trabalho, e a casa não se paga sem o primeiro, e a Casa não se funda sem nenhum dos anteriores. Uno se siente em estado hipotérmico e vai-não-vai. Já podemos? Não? Esperamos. 

Buenos Aires tem-me cuidado com o mesmo amor com que a recordava, e embora a vida esteja em modo hold (que todemigração parte da espera e do vagaroso-doloroso processo de transformação do estado desempregado-desalojado-despapelado e semi-teso para um desejado estável estado), a aventura já começou!  
A Cidade é generosa, a facilitar dito processo: os amigos dos amigos têm ajudado com mãos, ideias e tectos: o chão dos primeiros dias, o colchão dos desalojados seguintes, a companhia nas burocracias, os contactos repescados, te lo averiguote quedás en mi casate acompaño a Migracioneste hago circular el cvte llamo.
Ao fim de um cumprido mês porteño, reúno já três pares de meias extra, um maté de couro, um apartamento reservado no centro da cidade, e - júbilo meu, que a boca tem fome, e o tempo se quer entretido enquanto o alarme académico não toca - um emprego temporário num café simpático no centro do charmoso bairro de Palermo, onde passo os meus dias de avental de chita, bandeja no alto e sorriso a fazer-se à gorjeta. 
Caros: sou o protótipo de uma emigrante ilegal!
Pois é: e ao contrário dos agoiros e maus presságios, a mão dormente e a atrapalhação natural que caracteriza os meus bruscos gestos não me têm atraiçoado, e descubro franca vocação para o ofício: sou a melhor amiga dos clientes, duplicando um miserável salário em gorjetas, entretenho-me a ajudar turistas que não falam nem "oi" de espanhol, divirto brasileiros com o meu sotaque português "esquisito", aprendo artes circenses e malabares com a gestão dos copos e dos humores distribuídos nas mesas, e, apesar de trabalhar nove cadelas horas com apenas 40 miseráveis e sôfregos minutos de pausa, gosto da pinta do lugar, da esplanada e do terraço, dos brunchs e da gente-descansada que ali passa, de estar ocupada na espera e na falta (dos papéis, do trabalho, da casa, da Casa). E, porque não admitir, gosto da ideia de ter uns trocos ao final do mês para pagar a renda da casa que alugarei daqui a umas semanas.
Noto também que, entre a multi-funcionalidade das tarefas (numeração das mesas, recebe o pedido, pede na cozinha, limpa a mesa ao lado, traz o gelo, a salada é sem azeitonas, a pizza é com, três coca-colas, uma com gelo, uma com limão, uma light, dois cafés, um cheio outro cortado, quatro águas, duas naturais, calcula a conta, calcula o tempo, cancela pedido, limpa três mesas, distribui dois menus, a pizza ainda não chegou, faltam guardanapos, primeiro as bebidas, depois a comida) e a forçosa gestão psico-anímica dos intervenientes (bom dia, sorriso, piada, cliente mal-humorado, cliente mal-educado, chefe insuportável, só tens 40 minutos de pausa, nova mesa, sorriso, olá, como estão?, o sumo não sai?, a pizza está fria!, o chefe insuportável, olá, tudo bem?), não existem diferenças globais de exigências físicas e psicológicas entre as funções de um advogado estagiário numa grande firma e as de uma empregada de um restaurante fancy e requisitado em Palermo (excepto, talvez, no ordenado, but then again, tenho feito muito boas propinas).

Entretanto, também, matei saudades dos "trópicos" e recontextualizei-me: pois num dia estava semi-desmaiada junto a duas ventoinhas em alta potência, pingando suores e derretendo humores (e sim, eu me confesso, com as dormências chateando um pouco mais do que o costume), e, no dia seguinte, a temperatura baixou de 35 para 20 graus, e tive de mergulhar na água da chuva até aos joelhos para poder atravessar a rua e chegar ao trabalho (onde me mandaram para a cozinha porque parecia saída do mar e não estava apresentável. yup, chefe insuportável). 

Assim me grita "bienvenida!" esta cidade, entre verão e ainda-não, entre não tenho casa e já tenho colchão, entre bebe café e serve café, entre bifes e matés, enquanto espero.

Estou feliz e estou com vontade.
Dou graças por ter vindo, e tenho a sensação renovada de estar a tomar os certos passos - e nao sei como me vão correr a vida, a saúde, as dormências e as sortes. Mas estes passos são certos, sem formigueiros nem hesitações. É aqui que vou - espero - gozar o meus próximos anos.