Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

EM para a rua, a luta continua

Os graus continuam a torrar-me as manhãs, e o sol das sete acordadas parece ter ocupado o lugar, bem no alto, do que deveria pertencer ao meio, pico do dia. 
A aventura continua, e estou neste momento a trabalhar num hostel no coração do bairro de Palermo enquanto espero que as aulas do mestrado comecem. O ordenado é miserável, mas as horas são gozadas sem pressas nem confusões, entre as conversas com os viajantes que por ali passam e o tempo para ler, quando não passa ninguém.
A aventura continua - as outras coisas vão-se vivendo -, mas a EM nunca se deixa esquecer, e desta vez assumiu a sua forma mais detestável: a de "condição pré-existente", na sua vertente de alerta-vermelho para seguradoras e cautelopessimismo para qualquer qualquer cálculo de quota mensal a propor para um plano de saúde.
Pois é. Que a Argentina também tem um sistema nacional de saúde, mas - como imagino que muitos países também o façam - a Universidade exige-me, para minha ansiadinscrição, um comprovante de um plano de saúde válido no país (convido-vos a seguir o raciocínio: sem seguro, não há inscrição, sem inscrição, não há mestrado, sem mestrado, não há visto, sem visto, não há saúde que me valha!).
Diabos!, depois do batalhado ano a tentar arranjar maneira de furar a restrição de levantamento de injecções para poder emigrar, depois da suada espera para acabar o estágio da ordem e poder estudar o quero, depois das taquicardias da entrada no mestrado só à segunda tentativa, e uma pessoa tão sossegada pensando que agora-é-que-é, e pum! crash! plim! ploing!
É de mim ou isto está a começar a parecer uma novela indiana?

Lá me reuni com um assessor de seguros (gente tida como genericamente detestável, mas este era um amigo de um amigo e foi o tipo mais extraordinário do mundo), que me explicou a minha situação. Bom, não foi bem explicar. Depois de me ter explicado como funcionava o sistema de saúde argentino e o plano de saúde que tinha para me oferecer (e eu quase-contente com o requisito de inscrição quase-cumprido), lá lhe disse, nem mais nem menos ênfase do que aquele que se merece: "Bom, parece-me tudo lindamente, mas eu tenho uma particularidade: é que eu tenho esclerose múltipla. Algum problema?"
E com "ele explicou-me a minha situação", o que eu deveria realmente dizer seria "ele engasgou-se e ia caindo da cadeira ao chão".
Que, nesse caso, eu tinha uma condição pré-existente (acho que já vi esta expressãozinha ser dramatizada em filmes de hollywood, na mesma categoria de filmes sobre casamentos por conveniência e outros que tais), que a seguradora era, por lei, obrigada a aceitar-me, mas que as seguradoras se "protegiam" aplicando, nestes casos, valores de seguro altíssimos (assim enxotando). Que me iriam exigir a apresentação de TODO o meu historial clínico, com exames (tacs, rm's, sangues, potenciais), diagnóstico e declarações médicas e - esta é a melhor parte - prognóstico do meu médico.

Ora (com a devida vénia ao meu semi-herói) pedirem prognósticos sobre a evolução da EM dá vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo - tivéssemos nós prognósticos, pudéssemos nós saber as horas de amanhã (estaremos bem?, sentiremos o corpo?, poderemos correr amanhã?), e meia definição do que é ter EM se evaporaria.

A conversa com a boa alma terminou com uma franca confissão: "si un seguro para un tipo común te sale 800 pesos al mes, a vos te van a pedir, supongamos... unos 4000? no te quiero mentir, la verdad que no lo sé bien, pero las seguradoras no te van a tomar barato...". 

Condição pré-existente... damn you. Como se não nos bastasse vivermos as horas na consciência dessa condição, condição da vida e das horas e dos sonhos, de um "e se" e de um "tudo bem, mas". Como se não fosse bastante viver forçando um optimismo nas guelras para poder respirar, um "vai correr bem" arrancado à bruta, puxado a meia voz rouca, entalado entre as expectativas e os medos, as horas passam e a voz a sussurrar, em modo de reza autista, "vai correr tudo bem, vai correr tudo bem", e estes miseráveis a puxar a sardinha ao e-se-corre-tudo-mal, vai ter de se submeter a uma auditoria, protegendo os calos já forrados a ouro,  e eu cheia de bolhas furadas, precisamos de um prognóstico.

Ai querem um prognóstico? Também nós, mas são doces!

Bom, bom, teimosa como sou, na hora seguinte mandei cinco emails (ok, um deles foi aos paizinhos, em modo "help!, o que faço??"), e estou a estudar atalhos e alternativas que sejam economicamente viáveis. Porque isto vai-se resolver, porque há força para continuar a rezautista em voz alta e puxar à bruta quantos "vai correr tudo bem" sejam necessários para que assim seja, porque - porque tem de ser.
E as outras coisas também acontecem no meio das embrulhadas. 
Ainda ri com a resposta da menina de uma companhia de seguros de saúde de renome à minha pergunta "têm seguros de saúde que cubram estadias no estrangeiro": "não, nao, dona catarina, nós só fazemos seguros de saúde, não reembolsamos viagens".

sábado, 2 de fevereiro de 2013

"É preciso recomeçar a viagem"

Lisboa soube bem, carregada de vinho quente a aquecer a alma e sóis de inverno que só Lisboa deixa escorregar. A família, a lareira da tia, os lanches da mãe, os primos e as galhofas de irmãos, as saudades não mortas mas potenciadas, as caras do costume nos lugares de sempre e noutros descobertos. Gosto de Lisboa e da sua luz, gosto de Casa e do extraordinário lugar-Comum que me são as colinas, os miradouros e as ruas.
Em chegando, "não me quero ir embora".
Em partindo, um inspirado, resfolegado "vamos a isso", que a aventura ainda não começou (?) e é tempo de dar firmes passos rumo a esta vida que escolhi, por agora.

Seis meses de injecções na mochila (e um molho de declarações juradas, certificadas, assinadas, fotocopiadas que não chamam qualquer tipo de atenção aos seguranças dos aeroportos, e eu bem podia ter cópias de bd da mafaldinha e dava no mesmo, que raio de segurança é esta que me tira garrafas de água fechadas no lixo - já para não falar nas tesouras das unhas, e como é que eu agora asseguro a manutenção das ditas - mas me deixa passar nos raios x com 180 agulhas altamente afiadas nos bolsos, suficientes, veneno tivessem, para aniquilar toda a tripulação e metade dos passageiros just for fun), dizia eu, seis meses de injecções nas mochilas com excesso de peso, as famílias em procissão para o aeroporto e uns quantos chegados ao coração a completar o circo da partida - que eu gosto de despedidas porque nelas as almas se apertam e choram e se abraçam e se amam além-adeus.

O inverno chuvoso dos últimos dias de Lisboa (a dizer "saiam-me da frente, vamos embora, aviemos!") deu lugar a um verão porteño de 38 húmidos graus, às janelas inutilmente abertas e aos dias passados de cabelo enrolado no alto do pescoço, a pedir brisa. Buenos Aires está deserta, e até aos dias lhes dá a moleza do calor, e não passam mas se deixam escorregar  l e n t a m e n t e  pelas moles horas. Curiosamente, o calor custa mas não acorda a EM, e tenho a absurda alegria de poder anunciar que os meus suados dias têm sido tão pegajosos e pesados como os dos restantes mortais. 

Esperar - ah!, as esperas que também por nós esperaram - continua a custar. Conheci uma argentina que me disse que sou um "culo inquieto", e nenhuma novidade me estava dando, pois já sabemos os horários da casa: amanhã já devia ter chegado ontem, a vida devia acontecer ao compasso do meu discurso (atabalhoado, apressado, atrapalhado, atropelado) e as respostas às perguntas deviam ser imediatas (quando saiem os resultados do mestrado? quando posso passar a levantar os documentos? quando posso começar a trabalhar? quando podemos tomar um café? quando acontecemos?).

Quanta impaciência me corre neste corpo, quantos formigueiros me apressam o ritmo, querer viver, enxotar os medos das horas que ainda não conhecemos, estaremos bem?, sentiremos o corpo?, poderemos correr amanhã?

Sem pressas nem dias perdidos, corramos pois, caminhemos se apenas pudermos, mas viver é preciso.

"O fim da viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."

(José Saramago, Viagem a Portugal)