Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

emigrante-com-net, emigrante feliz

Não não, não fiquei soterrada sob escombros físico-emocionais de um qualquer desastre natural ou psicossomático, nem perdi o amor à palavra ou à aventura, nem abandonei o sonho de Buenos Aires. 
Foi precisamente por causa dele - do sonho - que desapareci por uns tempos; que ao vagaroso-doloroso processo de transformação do estado desempregado-desalojado-despapelado e semi-teso me esqueci de acrescentar um desesperado não-tenho-internet, característico de qualquer estado sem-lar que, até há pouco tempo, me definiu.
Mergulhei no pesadelo imobiliário do assina-contrato, entrega-chave, dorme-no-chão, contrata-água, contrata-luz, contrata-internet, só-daqui-a-três-semanas-señora, tem de ter bilhete de identidade argentino señora, mas eu sou portuguesa señor, e, depois de armar vários pés de guerra com o canalizador que-diz-que-vem-mas-não-vem (e eu com torneiras a pingar), com o serralheiro que-diz-que-liga-mas-não-liga(e eu com a janela sem poder fechar) e com várias companhias de internet que dizem que instalam mas não instalam (e eu sem mundo, señor!), saí  f i n a l m e n t e  do outro lado do limbo nesta bonita data de 12.12.12 com casa semi-montada, um colchão a fazer as vezes de sofá e uma recém-estreada rede de internet wi-fi que emite cânticos de glória por todo lar! Saudades, mundo!

Verdade-seja dita (o processo de emigração é, com efeito, vagaroso), esta é a única vitória do mês. Continuo sem papéis e demais carências; mas vejo a vida a acontecer aos poucos, entre uma mesa pintada à mão com cores garridas e gargalhadas, e o Verão que vai despontando na cidade e aquecendo as ruas e os suores. Sim!, Buenos Aires amanhece cada vez mais cedo e anoitece cada dia mais tarde, os sábados são de sol e os pés saiem à rua de chinelos, como os ombros que descalços vão. Continua a ser estranho reconhecer (?) nas montras, nas rotinas e na porta da vizinha da frente, um Natal a 40 graus de temperatura, mas é bom acordar com luz e sem lençol, preguiçar nos parques de Palermo, e jantar de janela aberta e abanico na mão.

Confessando o preguiçar, cabe-me também confessar uma novidade: pus um fim ao primeiro acto da minha curta carreira de camarera. Que o chefe era casca grossa e nos falava como se fossemos escravos comprados em promoção, e eu, que nesse dia até tinha a mão mais dormente do que o costume e estava de mal com a vida (e o dia tão bonito e eu ali a suar de avental, e o outro a mandar bitaites, e eu de mão dormente e com preocupações mais sérias, e o outro a tecer considerações críticas sobre a qualidade da alma alheia, mas o que é que isso tem a ver com o saco de farinha, e logo eu tão séria no meio de tanto malandro, e agora viro alvo de ataque verbal, não estou para isto), decidi sem dar por isso: nem é tarde nem é cedo, ninguém tem de aturar isto, muito menos a mãozinha de enxota-nojos e as costas viradas, e logo eu que tenho EM e Mau Feitio, e que já me bastam para me chatear, e fui! Atirei com o avental a meio da tarde do lugar onde trabalhava, bati porta, e atirei-me eu à rua; recebeu-me uma liberdade com sabor a sol de verão e uma Buenos Aires palpitante, pronta a receber-me a full time nos seus dias.  

E assim vem acontecendo a vida: com um salário no bolso e os dias mais livres, dedico-me agora a gozar o verão e a Cidade, enquanto preparo a casa para o(s) novo(s) ano(s) que aí chega(m) - pinta mesa, compra cama, uma manta ali e um pano aqui, faltam panelas, faltam copos, faltam pratos e somos 5 ao jantar, faz as contas e compra mais um, que para o mês que vem compramos dois, falta vir o canalizador e o serralheiro, mas o homem da internet já por cá passou. Preparo-me também a mim para a visita à terra-Mãe e terra-Casa, que o Natal é tempo de família e as injecções estão a chegar ao fim e é tempo de ir renovar o stock. 
E claro: continuam a divertir-me os dias o sotaque argentino (che, boluda!, fijate si pasa el colectivo!), o totoloto dos dias de verão com os dias de dilúvio, os programas pontuais de uma cidade em constante estado de diarreia cultural (poucos, que o futuro é incerto e os pesos são contados) e a pergunta en serio que no sos argentina?? (ok, ok, eu me confesso: como se me abre o sorridorgulho, que tonta feliz!), e com isso se me alegra a vida, no espera-nãoespera, no vai-nãovai, no liga-nãoliga.
Para já, tenho casa e internet e sou, por isso, uma emigrante feliz!