A história da minha EM nasceu no meio das minhas outras coisas, como não podia deixar de ser, e começou Em Marrocos, pouco antes da meia-noite de 31 de Dezembro de 2009.
Estavamos no deserto marroquino, perto de Merzouga, deselegantemente montados em cima de camelos. Assim compostos, inaugurámos o novo ano, 2010, cheio de promessas – como todos. Estava eu longe de adivinhar que EM não seria, por Outubro, abreviatura anedótica para Este Marrocos, seguido de suspiro (embora o suspiro se pudesse manter, afinal). As duas horas fizeram-se dois dias de caminhada sobre dunas, onde dormimos sobre as mesmas mantas que na manhã seguinte sentávamos em cima dos camelos. Naturalmente, cheirámos a camelo durante os dez dias que durou a nossa curtinha mas gozadíssima viagem. De noite, gozava-se o dia, e de dia fingíamos já não pensar nas nódoas negras que deveriam certamente marcar nossas partes traseiras, em forma de bossa. Deveriam porque, naturalmente, espelhos, casas-de-banho e afins, eram confortos que não faziam parte daquela camelada. No último dia, cada passada descompassadíssima dos camelos era gemida e chorada pelos mais bravos. A viagem foi curta mas extraordinária, e entre lamparinas e tapetes, medinas e tagines de borrego, 2010 foi inagurado cheio de desejos e vontades.
Voltados a casa ao final de 10 dias, e já lavado o cheiro a camelo (e, provavelmente, alguns piolhos), lá dou por mim com uma dormência na mão. Meio estrambelhada, achei que era coisa de camelo - ainda o traseiro estava dorido e as pernas meio bambas, concerteza deveria ser um mau jeito nas costas, algum fio emaranhado, um pedaço mais pisado, as bossas não são, de facto, ergonómicas.
Ao final de 2 meses, lá fui, contrafeita, a um médico neurologista que me transmitiu, numa frase, toda a sabedoria acumulada em 30 anos de experiência e estudo do corpo humano:
“Olhe, isso é daquelas coisas... passa passando!”
Não passou passando, e o que acabou por passar foram dez meses e 5 novos surpreendentes médicos de todas as especialidades de ortopedia, fisiatria e curandeirismo (que aquilo começava a maçar), temperados com bastante ligeireza, que se eles não se chateavam, eu também não me ia chatear, salvo com eles próprios. Para mim era ingenuamente óbvio, na altura, que nunca seria nada de grave.
Em Outubro de 2010, fui parar ao Egas para uma consulta, que virou uma semana - lá me internaram, torturaram (com agulhas do tamanho de espadas),
e me atiraram, ao estilo batata quente, o tal outro EM.
Reagi... ...reagi da única maneira que conhecia – à carapau-de-corrida. Não porque fosse especialmente corajosa, mas porque não sabia onde podia ir estatelar-me se me deixasse cair de um qualquer estado de controlo sobre mim.
E convenhamos... para mau, já bastava a EM – que se salvasse o ânimo, amparadíssimo pela família e alguns bravos.
Já com o pés na rua, lá vivi 2 meses tolerando as pancadinhas nas costas e os gestos de comiseração, calados. Os olhares, os olhares!, quanta compaixão condescendente.
Também por isso, enchi o peito de orgulho e assumi, não sem algum azedume, que eu era – não porque fosse; porque tinha de ser! - mais forte do que aquilo e aquelas palmadinhas. Lembro-me de ficar incomodada com certos cumprimentos, cheios de suavidades e toques de fada (se me conhecerem, ainda que de soslaio, saberão que não sou suave nem gosto de fadas), a falta de intimidade (des)compensada com o sofrimento suficiente para carregar no depois-do-olá “estás bem?”; “Estás bem?”, e o coração a sair dos olhos em forma de lágrimas de crocodilo (as suas, em jeito trágico?, as minhas, engolidas a seco?)
Claro. Sorriso aberto, “lindamente”, pois que outra?
Não queria dramas apaziguados com falsos optimismos – queria alguém que fosse capaz de dizer as coisas que eu não queria ouvir da minha boca. Palavrões, por exemplo. Aprendi uma grande libertação nos palavrões, ditos sozinha. Uma das reacções mais reconfortantes que tive foi a da minha amiga Sara, que, finalmente a sós, me olhou nos olhos, e me disparou: “que grande Merda, Catarina.” E quase mais nada.
Desfiz-me em descomprimido alívio.
Claro que aquele cinismo me tinha de sair por algum poro. Em Dezembro voltei a mi Buenos Aires querida, depois de 3 anos de saudades e tangos trauteados na cabeça, e só ali, sem ruidos exteriores, me permiti... reagir. E como lavei as ruas da cidade a baba e ranho! Aí começou, finalmente, a Grande Ressaca.
Passou um ano e meio. Há uns dias, em conversa com a B. (recente bravíssima companheira destas lides), falávamos de ressacas de descobrir a EM, e de como aprender a lidar com a dita.
Não faço ideia.
Entretanto, e porque tem de ser - tem de ser! -, pé-de-guerra, Ipiranga e peito feito, em sinal de "eu chego para ti"!
14 comentários:
e não chegas, queres ver? acho que será unânime à malta que te rodeia que chegas para isso e muito mais. A EM é uma merda, como dizia a Sara? É. Claro. Mas quantas merdas destas serão precisas para chegar para ti? até tenho medo de pensar seriamente nisto, pois arrisco me a dizer que te vejo capaz de lidar com a tua EM e certamente com grandes bocados da EM das pessoas que fores encontrando. E não é porque és uma heroína superior a tudo e todos. É porque és assim. Só isso. Sexta vou atrás do "teu" forró ao quiosque. Quanto às imperiais de hora de verão, é só apitares quando saíres, lá estarei! beijo grande Cálili
Catarina!
Adoro a paixão dos teus textos, a sinceridade do teu medo e a certeza de que a EM é apenas mais um peso na mochila. É um peso, é uma m****, mas a mochila continua às costas.
Eu não tenho EM, mas amo quem tenha. E claro! claro que não se aceita a EM de braços abertos! pelo contrário, só se pode enfrentar de punhos bem cerrados e com muita força! Sim, "porque tem de ser - tem de ser!"e tu chegarás!!
Catarina, é claro que não sei nem tenho legitimidade para dizer como lidar, ou deixar de lidar, com a doença. Mas uma coisa me parece certa, tens de ser tu a lidar com ela e não ela contigo…tem de estar na mochila, tem de levar picas que doem e amassam as pernas, mas não pode vir a correr atrás de ti. Não deixes que te persiga!
Catarina, é tão bom ler-te, como me revejo em Ti.
Foi em 1991 (bolas, bolas) que no Egas Moniz recebi esta prenda envenenada. Jovem de 17 aninhos reagi como Tu (carapau-de-corrida em modo speed).
Em 21 anos de EM, já passei pelo Rebbif 22 e 44, Copaxone e agora Betaferon acompanhado por Mitoxantrona (que é um bico de obra).
Desculpa usar este espaço assim desta longa, longa maneira mas talvez aqui alguém me possa falar dos efeitos secundários deste tratamento.
Obrigada, beijinhos,
Sílvia
Um ano e meio de Rebif 44, juntando a dois anos de médicos, consultas, ressonâncias e todo o tipo de exames, sempre com esperança de não ter EM. Aprender a lidar com a EM...também não sei. Eu sei que não lido com ela, limito me a ignorá-la e a seguir o ritual que tanto odeio todas as segundas, quartas e sextas. A odiar todas as manchas do meu corpo, a odiar os comentários...ahhhh o que é isso que tens no braço, perna, barriga?
Não consigo ler os teus textos sem chorar sabes, como percebo perfeitamente tudo aquilo que escreves...
Um beijinho
Silvia=)
Eu passei por Betaferon e há uns meses mudei para o Copaxone (que me deixa com uns dolorosos durões durante uma semana - picadelas diárias, pareço as 7 colinas de Lisboa), porque o primeiro não me fez nada (parece que criei anticorpos). Foi uma pena porque, além dos febrões iniciais, ao final de um mês de Betaferon, estava habituadíssima e fina - claro, com anticorpos a bater-lhe, mais fácil!
Não peças desculpa, o que eu quero é que usem este espaço de longas, longas e variadas maneiras!! Faz as perguntas, e esperemos respostas, e aproveita para contar histórias, a tua história, e faz relatos e declama estados de ânimo! E se quiseres escrever "lá em cima", diz-me que eu publico a tua voz=)
E se não houver respostas, repetimos as perguntas!
Beijinhos, obrigada eu*
Com as picadelas, e apesar de fobia de agulhas, acabei por me habituar - mas durante o primeiro ano, raramente me picava sozinha, porque me sentia metida no estatuto de 'doente'.
Então, agarrava na desculpa, juntava a família ou uns amigos à mesa, bebiamos um copo de vinho antes e plim!, tentávamos fazer do momento da doente outro mais leve de risadas nervosas (minhas) e solidárias (as outras). As manchas, odeio-as. Sem rodeios.
Os comentários.... solto o carapau-corrida que há em mim e respondo à galifão, com uma gargalhada mais ou menos sincera, dependendo do dia. Não tenho muitas respostas, mas comigo funciona encarar o touro pelos cornos - a EM ou alguns comentários mais tolos.
Beijinhos, Z
E porra! Como escreves bem!
Beijo
Rafaela
Parabéns pelo blog... sem dúvida que descreves o que acho que todos sentimos qd nos informam que temos de carregar para o resto da vida a tal amiga EM. Soube nem a um ano (1 de julho 2011) que sou portadora. Todos os meus sonhos e objectivos ficaram adormecidos naquela cama de hospital. Vou recuperando aos poucos, mas como dizes, a EM é uma 'merda'. Estou farta das marcas e dos olhares de compaixão!!!!
Continua a escrever assim...
Beijinhos
Queria Abobora Madura (não apropriado para este espaço?),
Sem surpresas, tenho gostado de te ler. Ajuda a matar saudades! (ah lindo!)
Grande beijinho do teu amigão,
Martim
«arrisco me a dizer que te vejo capaz de lidar com a tua EM e certamente com grandes bocados da EM das pessoas que fores encontrando», confere. É que subscrevo integralmente. E fiquei tão vaidosa da minha adjectivação, Catarina. E sei TÃO bem do que falas com o alívio que é desatar aos chorrilhos de palavrões - traço não justificado nem originado pelo diagnóstico, mas façamos de conta. E, curiosamente, «agarrar o touro pelos cornos» foi a expressão encontrada para explicar à minha mãe, não a maneira como encaras isto, mas como és. Com isto e com todos os outros pedacinhos de ti que já descortinei.
Again, mas sempre tão tão sentido: obrigada Catarina.
B.
Quase me esquecia! How do you feel about darmos um pulinho a Leiria? 14, sábado, colóquio com n vertentes da coisa, armamos uma mini excursão :)
Katy querida, não me ajeito nestas coisas....os meus comentários não entram. Devo ser robô, não consigo provar o contrário.
A vida traz surpresas, boas e más. São nuvens cinzentas que passam com o vento, com as vitaminas, com os palavrões e com a escrita, que no seu caso é um dom que sopra qualquer nuvem do horizonte de quem lê. Saudades do seu blog Argentino, mas este é melhor para quem tem dormências, no corpo ou na alma. Beijos e palavrões. Espero pelo vinho quente. T.Bicha
Vivo numa vila pequena perto de lisboa, e toda a gente se conhece, como se não basta-se, a minha mãe vai todas as manhãs ao café, e lógico k já deve ter falado de mim, e da minha EM às amigas... como é uma vila, palavra puxa palavra... o resto é facil de imaginar... Agora é normal as pessoas passarem por mim, e darem-me os bons dias e perguntarem como eu estou!!?? e eu, penso, mas este(a) nunca me falou, pk me fala agora e se preocupa!!!
Olá Catarina.
Estava nas minhas viagens aqui pela net e de repende "esbarrei" com o blog, que jà li do primeiro post até ao ultimo.
Ao ler este, parecia que estava a rever um pouco a minha história, pois também sou portadora de EM. Tudo começou com uma sensação estranha nos pés, mas não liguei pois tinha feito algum esforço a andar de bicicleta. No dia seguinte essa sensação tinha passado mas parecia que tinha um tipo de formigueiro na sola dos pés e pouca sensibilidade, mas apenascmecei a ficar mais preocupada passada uma semana que esta sensação não desaparecia. Depois de passar por uma série de médicos, lá houve um que se preocupou realmente comigo e me mandou fazer exames que pareciam que nunca mais acabavam. Quando a suspeita estava quase quase em certesa fui encaminhada para o hospital Egas Moniz onde ai fiz os derradeiros exames e me informaram da doença. Não foi nada fácil...nunca tinha ouvido nem lido nada da doença, e para mim foi um choque, pois na minha cabeça fizeram-se os piores filmes imagináveis...o médico e a enfermeira responsável foram impecáveis, e ajudaram-me muito, mas a minha mãe e o meu pai, o meu irmão e o meu na altura namorado (agora já marido) foram os meus pilares e ainda hoje o são...apenas os menciono a eles porque até hoje apenas eles e uma mão cheia de amigos sabem da minha doença. Foi um aconselhamento do médico na altura, que eu concordei e uma decisão que até hoje mantenho, pois não suporto aqueles sentimentos de coitadinha, a doentinha, etc, etc. e assim sou uma pessoa como outra qualquer. Sabendo "a sociedade" que seria portadora de uma doença ( EM ou outra qualquer) seria olhada e tratada infelizmente de maneira diferente.
Desde o primeiro dia que a minha terapeutica é o copaxone, e até agora apenas tenho o tal ardor nos segundos seguintes e fica o vermelhão na pele. Apenas no primeiro dia o meu irmão é que me administrou a terapeutica, nos dias seguintes e todos os dias sem falhar um, sempre fui eu sozinha e sem ninguém por perto...sinto-me melhor assim.
À quatro anos a trás tinha terminado o meu curso á uns meses...estava na flor e inicio da vida... desabou o mundo sobre mim...mas hoje já não penso como à quatro anos atrás. Talvez pela idade, talvez pela habituação á situação, talvez pela ajuda das pessoas mais próximas que mencionei, talvez porque a doença nunca mais se manifestou e afinal não é tão "má" como muitas vezes a "pintam", e porque como o meu médico me disse naquele dia de Março de 2008 "tu não podes viver com a doença, a doença é que tem que viver contigo, e tu é que mandas nela!".
E para findar este meu comentário extenso, só queria deixar ficar uma palavra de esperança para todos aqueles a que lhe foram diagnosticados EM, porque eu pensei que a minha vida acabaria, mas não, continuou apenas com a diferença que todos os dias mais ou menos á mesma hora tenho uma picadinha para fazer. Obrigada por existirem blogs como este e parabéns à Catarina pelo blog e pela força e determinação que tem;)
STo
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