Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Cartagena-Maravilhosa


Cartagena de Indias.
Depois de uma aventura (pouco) gozada no veleiro, encostámos amarras no cais clandestino de um bairro de lata e zinco, e apanhámos uma lancha até à Cidade: depois de muitas horas em estado de semi-desidratação (que a água também se vomita, descobriram alguns) e pele estufada pelo sol, mais uma estupidez de voa-saltos que nos deixou, por fim, na praia suja de Boca Grande, encharcados até aos ossos, gargalhando nossas caricatas figuras. Espremidos e retorcidos, a segunda ironia da tarde chegada foi perceber que os pés em terra firme, ao fim de dois dias em dança-balança, também enjoam. Várias horas passariam até que pudéssemos recuperar a estabilidade própria da alma e do ânimo.

Prossigamos... Cartagena de Indias. Continua extraordinária. Exótica, caprichosa, decadente, magnífica.
Lembro-me de ter lido há uns anos qualquer coisa sobre o sexo das cidades, e de como a sua arquitectura, as suas linhas e a cadência nelas gerada, as definiam como cidades masculinas, viris, energéticas ou femininas, sensuais, misteriosas. Não me lembro do caminho teórico, mas Cartagena é, definitivamente, uma mulher de botero: exuberante e debochada.
Jóia da coroa do império colonialista e porto-rei das rotas de comércio de outros tempos, a cidade tornou-se símbolo de luxo e decadência, com um toque de romantismo.
A cidade amuralhada repousa lad'a'lado com a zona moderna, em irrepetível exagero e harmonia - como dois tons estridentes que se condizem. As pedras e as madeiras envelhecidas, os tectos dos palácios coloniais e dos casões senhoriais, as palmeiras maduríssimas, as flores estridentes, a torre do relógio, batem certo com o tom de extravagante "miami" que os sublinha, ao fundo, seus arranha-céus brancos e seus envidraçados modernos. Em comum, o tom de sumptuosidade, de ostentação e de exotismo.
Entre-muralhas, as ruas são estreitas mas sólidas, as casas majestosas, as varandas imponentes, e delas continuam a cair em chuva as mesmas flores garridas. As portas altas de madeira trabalhada continuam abertas - porque Cartagena é quente todos os dias e todas as noites - e as gigantes ventoinhas continuam girando nos tectos, que são de não menos de quatro metros, altíssimos e frescos. Os cafés mais populares dão portas abertas para duas ruas, e parecem frescas arcadas, mas têm tecto e têm portadas que se encostam, encaloradas, nas paredes dos almoços que ali se servem, a mesma carne com arroz e feijão de sempre.
Fora-muralhas, as ruas são estreitas, porque encolhidas entre arranha-céus, majestosos, modernos, limpos, rodeados de hoteis de cinco estrelas, casinos e clubes nocturnos.
As paredes da cidade amuralhada são garridas e bem pintadas - amarelos torrados, vermelhos de sangue, azuis fortes, como as calças de algodão do suado homem cor-de-azul - preto pretíssimo - que dança frenético na Plaza de San Domingo; os arranha-céus de Boca Grande são brancos e envidraçados, ao jeito Calatrava (ponte da Mulher, Gare do Oriente...), como combinados dominós jogados no tabuleiro. 
Escolhemos entre-muralhas: dormimos numa casa velha, de cozinha antiga e varanda em ruínas, com os cotovelos na rua e um fantasma regular, alma perdida de uma dama antiga que gosta de passear pela tijoleira partida e buscar companhia na casa que em tempos habitou. Diz-se também que as paredes escondem mapas e ouros, escondidos aos piratas que se abordavam no horizonte, e que, mortas as familias, os piratas fugiam ao mar, e as paredes ficavam para trás, recheadas de história e de incógnitas.
As ruas à noite transformam-se e a cidade resulta fantasiosa, boémia e extrovertida. De dia, os cafés, as boutiques, as frutarias, as padarias, e as pretas na rua a venderem talhadas de manga e papaia  melancia, tudo é exótico e tudo é calor, as pessoas vestem-se de branco e de cores e soltam suspiros e cantigas pelas esquinas.
Descrever Cartagena é roubar-lhe em palavras aquilo que a cidade-mulher (mulher voluptuosa, descarada, majestosa) mostra, toda-oferecida, em sentido, cadência, compasso.

Já ouvi dizer que não se pode morrer sem a Nápoles. 
Eu acho que não se pode morrer sem ir a Cartagena.





1 comentário:

Z disse...

Minha linda! Fico muito feliz por ti! Desejo que toda a tua aventura leve a EM para bem longe e para nunca mais voltar :) Um beijinho grande