Não havia dúvidas: era ir!
Depois de quinze dias divididos entre as vilas de café
plantadas nas três caudas colombianas dos Andes, e as vilas de peixe debruçadas
na beira-mar do Darién, o passo seguinte pousaria na magnífica e decadente
Cartagena de Indias, que eu ansiava repisar. As voltas por terra eram longas,
os transportes careiros, e a oportunidade surgiu: cruzar o mar desde
Sapzurro e entrar na cidade em veleiro? Quarenta horas de mar-alto? Antes
fossem quatro dias, e melhor seria. A ideia pareceu-nos ousada, romântica
e original, e comprou-nos de imediato.
Reforçámos o carregamento de arroz, cenouras
e água, e esperámos que Lucho, el Capitán, desse o aviso de partida, lido
no céu e nas tempestades de véspera.
Lucho, el capitán, carinhosamente baptizado Capitán
Catalán, era um catalão de 50 anos, estatura quixótica, pele
curtida pelo vento e veias engrossadas pelo sal que lhe entrou sangue
adentro. Abandonou a pátria e a aborrecida profissão de fotógrafo
(pausa para suspirar), e, depois de uns anos em voltas dadas em cargueiros de
pesca de bacalhau nos mares do norte, comprou um pequeno veleiro azul, que
baptizou de Kawama (que diz que é uma espécie de tartaruga) e
veio dar voltas para mares mais quentes. Para sobreviver, leva turistas de
Cartagena a San Blas, no Panamá, e para viver, faz travessias atlânticas que
lhe agitam o peito e lhe deixam histórias. Dono de um discurso ébrio e
desarrumado - por personalidade e pelos oito charros diários que fuma -,
Lucho ganha uma surpreendente lucidez quando avalia a tempestade que ainda nao
acalmou ou faz as contas à agua necessária para cinco grumetes e 40 horas.
Chicos, que mañana nos vamos, ciciou o capitan, ao fim de quatro esperados dias.
Lá partimos, os cinco bravos (nós, dois urugaios
e uma sueca-romena) e o seu capitao, cheios de vontade no peito e luz nos
olhos.
Dois dias num veleiro? Uma aventura!
Ver o céu em alto mar? Magnífico!!
Chegar a Cartagena de Indias, junto à torre do
relógio, de barco e com o vento?? Irrepetível!!!
E irrepetível foi, como vos passarei a contar.
Nos primeiros vinte minutos de viagem, pressentimos o
enjoo - mas pensamos, já já nos habituamos ao embalo do mar.
Ora!
O vento não movia um cabelo e o veleiro
não velejava nem cortava as ondas, mas se limitava a seguir o passo lento
do mar e de um motor ligado em primeira velocidade - sobe a onda, desce a
onda, sobe a onda, desce a onda, eu via a proa a subir e descer num vagaroso e
enjoativo compasso, e com ele todos os meus orgãos a flutuar. Olhar o mar
revoltava o estomago, fixar o barco revirava a cabeca, fitar o chão era
chamada ao vómito a pés juntos. Os cinco entusiastas que subiram a
embarcação em sorrido alvoroço correspondiam aos cinco cadáveres calados
que tentavam concentrar-se num ponto fixo no horizonte, cada no seu e entregue
à missão individual de minimizar o enjoo do barco, suores frios,
expressão ausente, só o capitao cantarolava, entre charro e anedota - o
cheiro adocicado dos primeiros piorava fortemente o enjoo generalizado, e as
segundas ja nao eram ouvidas ou respondidas. Uma divertida miséria! Três
vómitos depois (nenhum meu, faço notar, embora não me possa gabar de
grande rigidez de disposição), o sol a pique, os corpos amontoados junto ao
mastro para partilha de sombra, o nosso estado dava vontade de rir a quaisquer
deuses - coisa que de vez em quando acontecia, se cruzávamos os olhares e nos
consolávamos: so faltam 30 horas, gargalhada, sarcasmo. Estávamos
qual anedota de náufragos!
Cozinhar?, qual quê!, que a cabine triplicava o enjoo,
como caixa de fósforos em movimento, e entrar nela era (como o
comprovaram dois anónimos) vómito-certo!, mas também não importava, que a
comida não era benvinda aos delicados corpos descompostos, e só o
capitão continuava a enfardar, dada a fome dado o charro (e já lá iam
dez). E quem diz que me conseguia concentrar e manter o pulso firme para me injectar? Tive de fechar os olhos para não enjoar ao fixar na caneta azul e encarnada - ao mesmo tempo que fazia um esforço tremendo para não deixar a mão ser embalada pelo enjoativo vai-vem das ondas, do barco e do universo girando à nossa volta.
Uma trágico-comédia!
Avistámos, enfim, Cartagena, como uma miragem no
deserto, rindo de alegria e das nossas figuras - dois dias no mar, e nós feitos
farrapos humanos!
Ainda assim, nem tudo foi apocalíptico: no meio do
flagelo marítimo, vimos cardumes de peixes voadores sobrevoando o mar, que
são como borboletas gigantes com escamas, e
houve espectáculos de saltos de atum; e houve um momento, um momento
breve, em que apareceram golfinhos junto ao barco, e, exibicionistas como só os
golfinhos e os homens são, se encostaram à proa, o Lucho gritava-nos, assobiem
que se deixam provocar, e nós assobiávamos (bom, eu não, que
não consigo nem chamar um cão velho), e eles saltavam mais e davam
piruetas, e nadavam junto à proa, em corrida connosco. Nesses brevíssimos
minutos, perdemos a descomposição, corremos à proa, assobiámos, rimos,
parecíamos miúdos, nós e os golfinhos, infantis, brincalhões, efusivos.
Valeu a pena passar o cabo das enjoadas tormentas para
ver golfinhos a saltar? Talvez.
Valeu a pena, certamente, para saber que
o não voltarei a fazer - e afirmo-o divertida.
Vale certamente a pena poder olhar para trás, depois
das patéticas e cómicas horas de horror, e rever-nos a entrar no barco de cabeça erguida e corações
ao alto. Pobres nós!
1 comentário:
A vivacidade do relato quase me enjoou, também!
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