Este blog foi impulsionado pela SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, e pretende ser um espaço onde se
entornem discussões, novidades, perguntas, respostas, conversas, histórias e viagens – em redor da vida com Esclerose
Múltipla e Outras Coisas Também.









quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Rumo à costa (el Caribe!)


A chegada ao Caribe foi a chegada a Turbo, cidade descrita na literatura do género, como uma cidade suja, caótica e perigosa. A verdade é que a nossa chegada podia servir de cena inaugural a um filme de gangsters de fraca qualidade. O autocarro, que devia ter chegado a umas seguras sete da manhã (hora condigna onde o sol já vai alto e todos os perigos ilumina), atirou-nos porta fora às ainda escuras cinco. Os primeiros segundos foram deliciosos: o autocarro a afastar-se, e nós ainda atordoados, aqui?, com esta pinta?, onde estamos? A rua sombria, a noite ainda cerrada, e o ambiente era o do cais do sodré a más horas, antes da era rosa e pensãoamor. Os vultos iam surgindo das esquinas, cambaleantes (para nós,  os vultos, para os vultos, as esquinas), e as vozes eram atabalhoadas e em jerga. Da tarde para a madrugada, passámos de uma nostálgica vila colonial de cavalos e velhos semeados na sombra das árvores para uma cidade semi-urbana, caribenha e rufia. A noite era ainda ébria e não-ressacada, apenas povoada por homens gingões e poucas mulheres de má vida (noto que as cidades de cais têm esta tendência de vestir um ambiente boémiodecadente). Bem-vindos a Turbo! Nada para ver e uma barqueta para apanhar às oito da manhã. Como tínhamos fome de café, e porque não dava senão para mergulhar a espera naquele submundo, aproximámo-nos do carrinho de mão fumegante que acabava de virar a esquina: dois tintos, mochilas no chão, rabos no asfalto, e aí esperámos as voltas do relógio, vigilando divertidos as bebedeiras e os olhares desconfiados da cidade.
Carrinho fumegante

Quatro tintos depois (que, relembro, são cafés e não vinhos), passadas as bebedeiras e nascido o sol, lá percorremos os 4 quarteirões até ao porto (que um jovem alcoolizado ainda tentou, pouco convincente, levar-nos na sua mota, eu, ele, o Rodolfo e as duas mochilas tamanho-humano, por uma quantia "simbólica"), e lá percebemos a chegada ao Caribe. 
O Caribe: os locais são mestiços, mulatos ou retintos. Os homens andam de camisa aberta e as mulheres rebolam. As conversas têm mais descaro, as gargalhadas são mais estridentes e gritam mais soltas, os piropos também, as cores ressaltam mais à vista, mesmo que desbotadas. Pessoalmente, distraio-me com os cabelos delas: os entrançados, os enlaçados, os caracois deixados soltos, os matagais sempre-em-pé, as vaidades esticadas, as bolas enroladas no alto da cabeça com falta de pachorra para as voltas. Deles, prendo-me nas conversas e nos gestos: as piadas em voz alta, as gargalhadas partilhadas com o mundo, coça a barriga, boca aberta, dentes alvíssimos, tez pretoazul. Os olhos enormes, os mil tons de preto, castanho, café com leite, mais café, mais leite, as peles lisas, tesas, os rabos redondos, os traços perfeitos. 
E depois, entrámos no caos do cais, que eu tanto gosto. Vai pássaro, vem família, vai corda, vem homem, vai café, vem saco. Grita, corre, senta, espreguiça. Parte, chega, pesa, pousa. O porto cheio de albatrozes, pássaros gigantes meio bicho meio bico que não podem fitar os pés sem esventrar o próprio peito ou partir o bico no chão, dependendo da agilidade de cada um. Os barcos todos de madeira pintada, com nome de mulher ou de reza.
Cidade de Cais

Meio bicho meio bico

Finalmente, com quatro horas de atraso, partimos - uma lancha velha semi-madeira com motor de tractor; e como nos divertimos! Depois de duas voltas atrás dentro-dágua porque (i) nos esquecemos de uma família em terra e (ii) nos esquecemos do combustível, ah!, afinal não, lançámo-nos ao mar em alta velocidade e não imaginam!, a velha barqueta saltava-voava rente à água, e nós do banco, como uma montanha russa, pás!, pás!, pás!, a velha lancha pronta para as curvas, nós surpreendidos, e a velocidade a obrigar o barco a saltar por cima das ondas sem furar. A linha da costa que seguimos era de selva a pique mar-adentro, densíssima e pás!, mergulhava sem espaço a areias ou intermédios, mergulhava de cabeça, e o barco aos saltos, pás!, pás!, pás!, e eu só pensava que se os meus irmãos estivessem ali, se estariam desmanchando a rir como eu, o barco ia aos saltos de estupidez, pás!, pás!, a velha senhora atrás de mim ia agarrada a banco, mas o banco era uma tábua solta e também saltava, um salto demasiado alto lá magoava a bunda, as mochilas e as maletas lá à frente saltavam também e quase acabavam no fundo-mar, mas eu continuava a rir a bandeiras despregadas como se tivesse seis anos. Três horas nisto! Não me divertia assim há muito tempo. Eventualmente, a linha da costa fez uma curva, e ali rés-vés ao Panamá, chegámos a um vilarejo chamado Capurganá.


E o melhor de tudo é que as injecções continuam frias (benditas placas azuis) e as dormências continuam as mesmas e não mais. Próximo passo: missão calor (que o caribe derrete os ossos). Vamos a isso!

2 comentários:

Snowball disse...

mais um relato fantástico! só dá vontade de encher a mochila e partir!

catarina disse...

Às vezes, é fazer isso mesmo =)
Nem que seja por uns diazinhos, que a mochila cheia também se diverte por Portugal fora!